O ano de 2020 pode facilmente ser definido como inesquecível “por conjurar a intensificação da complexa crise socioambiental”, para a qual o Papa Francisco chamou nossa atenção em 2015, na Encíclica Laudato Si. Em consequência, certamente “marcará a história da Terra e de todos os seres que nela habitam pelas próximas décadas”.
A pandemia do coronavírus evidenciou crises já existentes e revelou a radicalidade com que os limites de segurança da biosfera estão sendo extrapolados. Mas “os tempos pandêmicos do Covid-19 deixarão, também, um inspirador impulso salvífico, disputando com a morte e o desamparo: novas formas de solidariedade multiplicaram-se nas cidades, nos campos e nas florestas”.
Para pensar sobre tudo isso, é preciso primeiro, tomar a sério o atual momento histórico, no qual os seres humanos afetam profundamente a Terra. Os geólolos chamam esta época de “Antropoceno”. A partir daí, somos chamados a refletir sobre os efeitos conjugados das crises que fazem com que a pandemia do Covid 19, tenha efeitos tão profundos e devastadores. A estas dimensões de adoecimento planetário e ultrapassagem dos limites ecológicos, soma-se “a lógica de acumulação/empobrecimento, fortalecida nestas últimas décadas. Lógica marcada pelo racismo em suas múltiplas expressões neocoloniais”.
É tomando em conta os diversos aspectos da crise planetária multidimensional que “negacionismo” como fenômeno social e político torna-se mais significativo. Não se limita mais à relação com a ciência, mas ganhou lugar de poder com os governos Trump e Bolsonaro e com a ampliação da força da extrema direita em muitos lugares do mundo. Juntos, estes fenômenos indicam uma mutação na ordem neoliberal que governou o mundo nas últimas décadas. Alguns autores falam de uma nova ordem “suicidária” e/ou “necropolítica”. São títulos assustadores, mas podem revelar verdades que exigem de nós atenção e ação.
Sabemos que nós, seres humanos, não somos igualmente responsáveis por este quadro de destruição do planeta. Dados sobre o aquecimento global, emissão de carbono e desmatamento mostram a responsabilidade diferenciada das “elites” em relação aos povos originários, aos pobres, aos camponeses e quilombolas. Desta forma, “nossa Casa Comum está sendo profundamente afetada em seus ritmos e funcionamentos vitais pelos efeitos do sistema econômico vigente”. Sistema que “não respeita a generosa capacidade de gerar e alimentar vida de nosso planeta vivo. Esta dinâmica, resultado da ‘economia que mata’, gera o empobrecimento de parcelas cada vez maiores da humanidade, para o enriquecimento de poucos”.
Na “Carta Encíclica Laudato Si”, o Papa Francisco ao tratar do cuidado da Casa Comum, propõem uma profunda conversão, a partir do reconhecimento da impossibilidade física, real, material do “crescimento ilimitado”, como propunha a lógica neoliberal. “Chegou a hora de aceitar certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo” (LS§193).
A pandemia do Covid-19 é mais letal em um mundo que já estava frágil. Onde a possibilidade de crescimento ilimitado da economia, o sonho prometeico do neoliberalismo, enfrenta o esgotamento da base material da Terra. A crueldade deste modelo está ainda mais exposta. Não é à toa que os Estados Unidos, país mais rico e mais negacionista do mundo, esteja entre aqueles onde se verifica o maior número de mortes pelo vírus.
Atualmente, muito do que acontecerá em nossos mundos (mundos das florestas e dos rios; dos povos indígenas; dos latino-americanos; caribenhos e nos mundos das geleiras e dos oceanos) depende da luta pela vida dos jovens negros nas ruas dos Estados Unidos. Depende da força de nossos indígenas, que resistem ao Covid-19 e denunciam o desmatamento da Amazônia. Depende mais do que nunca, da força dos pequenos, dos fracos e dos pobres.