Cinthia Cristina da Rosa Vilas Boas e Fernando César Paulino-Pereira retomaram os temas abordados por eles sobre saúde mental, Juventude e Relações Étnico-Raciais e a Imaginação como Resistência, na manhã de sexta-feira, 10.01, do Curso de Verão 2025. A saúde mental coletiva e o acesso aos direitos humanos fundamentais está no cerne da apresentação dos dois palestrantes.
Cínthia inicia sua fala com uma provocação: “como está o nosso selfie, nosso olhar sobre o real e o ideal? O que mais vemos? E o que vemos de verdade? E aqui eu não me refiro apenas ao retrato de si mesmo e do outro. Mas à saúde mental de si e do outro”, reforçou.
E a palestrante prossegue: “queremos abordar nesta manhã não apenas o bem-estar emocional, mas também as dinâmicas sociais e raciais que impactam profundamente as populações mais vulnerabilizadas no Brasil”. A psicóloga e especialista em políticas de saúde mental, apresentou uma reflexão ampla sobre como cuidar de si e do outro como prática coletiva que requer a integração de dimensões físicas, emocionais, espirituais e sociais.
Um Tripé para o Cuidado Integral
Cinthia propôs um modelo baseado no tripé do AUTO, ou o selfie — autoimagem, autoamor e autocuidado — como uma estrutura essencial para a saúde mental. Ela destacou que o cuidado não pode ser fragmentado. “Saúde se divide em dimensões: profissional, física, emocional, mental, espiritual e social. Sem esse equilíbrio, nossas dores são somatizadas, e nenhum remédio neuroquímico é capaz de alcançar todas as nossas necessidades,” afirmou.
A Importância dos Círculos de Cuidado
Vilas Boas enfatizou que o cuidado deve ser encarado como um processo circular e coletivo. Atividades como rodas de conversa, capoeira e samba de roda são expressões culturais circulares, e “o círculo incomoda”, salientou “São práticas que promovem o bem-estar e a conexão comunitária”.
Racismo Estrutural e o Acesso à Saúde
A discussão também pontuou como as marcas sociais – como cor da pele e condição socioeconômica – são determinantes para a saúde mental. “Para meninas negras, por exemplo, o cabelo pode ser tanto um símbolo de identidade quanto uma fonte de discriminação, portanto são determinantes de saúde mental”.
Dados alarmantes reforçam a necessidade de políticas públicas mais inclusivas: 77% das vítimas de homicídios entre jovens no Brasil são negras, e as taxas de suicídio são crescentes entre populações vulneráveis.
O Estatuto da Juventude (2013) e a Política Nacional de Saúde Mental representam marcos no reconhecimento das juventudes como agentes sociais plurais. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com serviços como CAPS e unidades de acolhimento, propõe uma abordagem humanizada e integral, rompendo com o modelo exclusivamente “medicalizante”. “Contudo, essas iniciativas precisam de continuidade para atender de forma equitativa às populações mais marginalizadas”, insistiu.
Como exemplo de boas práticas, Vilas Boas apontou movimentos sociais e culturais, como o hip-hop e coletivos artísticos, que desempenham papel essencial no letramento racial e na organização política da juventude negra, que evidenciam a importância de escutar suas demandas sobre temas como gênero, raça, sexualidade, cultura e trabalho. “Políticas públicas devem transcender governos específicos e garantir uma institucionalidade capaz de incluir os jovens em sua diversidade”.
Imaginação como Ferramenta de Resistência
Para Cinthia, a imaginação é uma ferramenta de resistência e destaca que “a memória e a imaginação dialogam para projetar futuros possíveis e resistir às pressões impostas pela racialização. A luta antirracista é também uma forma de construção de uma subjetividade positiva”.
Desafios das Políticas Públicas
Durante a sua contribuição, Fernando Paulino retomou a discussão à cerca dos princípios para o cuidado na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), o respeito aos direitos humanos e o combate a estigmas e preconceitos.
“A saúde mental no Brasil continua enfrentando desafios complexos, especialmente no que se refere à garantia de um cuidado integral, humanizado e eficiente. E é por isso que é necessário seguirmos lutando para que os princípios fundamentais que sustentam o modelo de saúde integral sejam mantidos, como a promoção da autonomia dos indivíduos, a redução de danos e o controle social exercido por usuários e familiares”.
RAPS: A Transformação do Modelo de Atendimento
Paulino explicou que a RAPS é uma das principais ferramentas da Política Nacional de Saúde Mental, criada para romper com o modelo tradicional, centrado na internação em hospitais psiquiátricos. O sistema propõe um cuidado em liberdade, priorizando a desinstitucionalização e a integração dos serviços à comunidade. A rede abrange desde a Atenção Básica até os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), passando por Unidades de Acolhimento e serviços de emergência.
“Para que o modelo seja efetivo, é fundamental que os profissionais de saúde mental sejam capacitados para trabalhar diretamente com as comunidades, integrando os saberes populares às estratégias de cuidado. Essa aproximação, além de enriquecer a prática clínica, amplia os campos de intervenção em psicologia social, especialmente em áreas que envolvem a preservação da vida e o fortalecimento da autonomia das populações atendidas”, complementa.
Reflexão sobre algumas experiências
Um caso emblemático mencionado por Paulino foi o de um paciente submetido a mais de cinquenta internações sem encontrar uma solução definitiva para seus problemas. O exemplo evidencia a urgência de repensar os modelos atuais, priorizando práticas humanizadas e efetivas.
Outro exemplo citado por ele foi o de uma sessão terapêutica em que os participantes confeccionavam tapetes enquanto compartilhavam histórias de vida. Essa prática, além de promover suporte emocional, contribuiu para a criação de um espaço de troca e aprendizado coletivo, reforçando a importância de abordagens que integrem criatividade, escuta ativa e solidariedade.
O Caminho para Políticas Públicas mais eficazes
Tanto Paulino quanto Vilas Boas enfatizaram que para que a saúde mental seja tratada como um direito universal, é necessário investir na continuidade e no fortalecimento da RAPS, integrando ciência, cultura e saberes comunitários. A promoção de um cuidado integral exige o compromisso com a diversidade e a valorização de cada indivíduo em sua singularidade.
“A aproximação dos equipamentos de saúde mental com a comunidade deve ocorrer no campo operativo, onde há profissionais capacitados com habilidades para auxiliarem os grupos sociais de forma a contribuir para sua autonomia”, enfatizaram.
Resistência Coletiva
O encontro concluiu com um chamado à resistência coletiva e à transformação social. Cinthia e Fernando reforçaram que cuidar da saúde mental é questionar estruturas opressoras e construir narrativas de resistência. A imaginação e a arte foram reafirmadas como ferramentas para superar adversidades, promovendo bem-estar e igualdade.
Essas reflexões lembram que a saúde mental não é apenas individual, mas um ato de resistência coletiva e um caminho para a justiça social. A integração entre cuidado pessoal, comunitário e político é essencial para um futuro mais equitativo e saudável.
Texto: Renata Garcia
Fotos: Fernando Lopes