Ao iniciar sua fala, na noite de segunda-feira, 09 de janeiro, quarto dia de encontro do Curso de Verão 2023, o professor Acácio Almeida faz memória da história do Curso e destaca: “mesmo que não estejamos nas mesmas salas e corredores da PUC-SP, posso sentir a mesma força vital que circulava por aqueles espaços. Estou feliz por estar aqui com vocês, mas ao mesmo tempo, de luto, assim como sei que vocês também estão, por causa dos atos terroristas ocorridos em Brasília, no domingo, 08 de janeiro”.
“Aqueles que invadiram a esplanada, destruíram bens públicos e patrimônio cultural são os mesmos que vêm promovendo, ao longo dos séculos, todo tipo de violência no campo e na cidade e não podem passar impunes”, alerta.
Na análise do professor, “passados 35 anos do primeiro Curso de Verão, e nos 35 anos da promulgação da Constituição Cidadã, o tema de 2023: Educar para um Mundo Social e Racialmente Justo se revela extremamente fundamental, nos informa sobre as urgências em focarmos as nossas atenções às questões globais e locais na busca da formulação de respostas às questões tidas como contemporâneas, mas que têm a sua gênese nas injustiças e opressões perpetuadas historicamente. Diante disso, precisamos converter consciência em ação transformadora.”
Doutor em sociologia pela USP e pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, Acácio Almeida foi Pró-reitor de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da Universidade Federal do ABC, no período de 2018 a 2022, e com a sua bagagem teórica e vivência na militância por direitos humanos e igualdade racial e social, lança luz sobre as origens do racismo, mas, sobretudo, lança luz sobre a força da resistência e defende que a educação, a cultura e o respeito à diversidade são partes imprescindíveis do projeto transformador de humanidade.
Quanto vale uma vida humana?
Acácio Almeida faz alguns questionamentos incisivos aos participantes da formação: “Quanto vale a vida de um africano, de um afro-americano ou de um afro-brasileiro? Qual caminho que devemos percorrer para vincular a ideia de importância que a sociedade atribui à vida humana?”
Traçando um comparativo, o sociólogo pontua que na República Centro-Africana, a expectativa de vida é de 53 anos, contra 84 anos no Japão, uma diferença de 31 anos entre os dois países. Do outro lado do planeta, um morador do bairro Jardim Paulista, nos Jardins, vive cerca de 23 anos a mais do que um morador do Jardim Ângela, na Zona Sul de São Paulo.
“O estudo das disparidades dentro de uma determinada sociedade acaba sendo muito mais instrutivo e incluem a percepção de que as nossas sociedades têm se tornado mais refratárias à convivência pacífica e à ideia de solidariedade tão cara a qualquer projeto de humanidade”, explica o sociólogo. E acrescenta: “A pobreza, a violência interétnica, as desigualdades de gênero e de raça, o assassinato de indígenas e de jovens negros e negras, as invasões a comunidades e favelas, as agruras que fazem da empregada doméstica negra, vítima primordial, o alvo principal da pandemia, a insegurança alimentar e nutricional, a precarização da saúde, a crise ambiental e econômica, são exemplos da barbárie e da disputa civilizacional, e, logo, uma ameaça real ao projeto de humanidade”.
Ação transformadora (Mariama)
“Mariama, Nossa Senhora, mãe de Cristo e Mãe dos homens!
Mariama, Mãe dos homens de todas as raças,
de todas as cores, de todos os cantos da Terra.
Pede ao teu Filho que esta festa não termine aqui,
a marcha final vai ser linda de viver.
Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu Filho
não fique em palavra, não fique em aplauso.
Não basta pedir perdão pelos erros de ontem.
É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem.
Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão.
É Evangelho de Cristo, Mariama (…)
(…) Mariama, Mãe querida, problema de negro
acaba se ligando com todos os grandes problemas humanos.
Com todos os absurdos contra a humanidade,
com todas as injustiças e opressões. (…)
Basta de injustiça! (…)
Acácio Almeida cita trechos desse poema de Dom Helder Câmara, lido na Missa dos Quilombos em 1981, e lembra a sua atualidade, 42 anos depois. Hoje, na leitura do sociólogo, “o próprio Dom Helder não diria problema de negro, pois o povo negro não é problema, é parte da solução. O problema tem outros nomes: racismo, ganância e ódio e está ligado a todos os grandes problemas humanos, a todas as injustiças”.
Pedro Tierra, também citado pelo sociólogo, foi um dos poetas que ofertou o seu verso para introduzir, em espaços sociais e culturais mais amplos, o tema interditado na sociedade brasileira: o combate ao racismo, e fez àquela época, uma declaração decisiva: “ao sul da razão, aqui ao sul da linha do Equador, a consciência nasce de dentro da tempestade e da comoção… dito de outro modo: “conheço aquilo que me comove. Naquele sentido de mover com. Quando a consciência se converte em ação transformadora”.
“Peço aqui, que a nossa consciência militante, que há muito se converte em ação transformadora, lembre todos os dias que não houve reparação histórica para milhares de mulheres e homens, crianças e jovens escravizados e seus descendentes”, enfatiza Acácio Almeida.
No dia 09 de janeiro, o dia em que o professor apresenta ao público do 36º Curso de Verão o tema Educação, gênero e raça: vidas negras importam, nesse mesmo dia, há exatos 20 anos, era promulgada pelo presidente Lula a Lei 10.603/2003, tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. A partir dessa Lei, a cultura afro-brasileira passa a ser ensinada como parte constituinte e formadora da sociedade brasileira, na qual os negros são considerados como sujeitos históricos, valorizando-se, portanto, o pensamento e as ideias de importantes intelectuais negros brasileiros, a cultura (música, culinária, dança) e as religiões de matrizes africanas.
Mais que um legado quantitativo, as Leis 10.603/2003 e 12.711/2012 representaram uma conquista qualitativa na redução das desigualdades historicamente acumuladas, e possibilitaram o acesso a novas oportunidades, contribuindo para a reparação de perdas provocadas por diferentes formas de discriminação sofridas pelo povo negro no Brasil.
Mas a “universalidade e a diversidade de direitos devem ir além do artefato de exercícios de retórica política”, alerta o professor. “Elas devem reconhecer e garantir que a educação, a cultura e o respeito à diversidade e à pluralidade sejam um imperativo ético, inseparável do respeito pela dignidade da pessoa humana”.
As ciências sociais e humanas têm as ferramentas para pensar o global no local e explicar a sobreposição das múltiplas escalas que determinam o conjunto de agruras no campo da justiça, do trabalho, da educação e da saúde.
O momento presente, define o sociólogo, “pode ser a oportunidade para a construção de vínculos baseados em valores que nos unam em uma só família humana. E cita novamente as palavras de Pedro Tierra: “ou a revolução social do século XXI será negra, ou não será”.
Ao encerrar sua palestra, o professor Acácio Almeida refaz sua audiodescrição e se reafirma como homem negro, pois segundo ele, a sua autoafirmação enquanto homem negro “é um ato político de quem sabe que vidas negras importam”.
Renata Garcia
Equipe de Comunicação