Esse foi o tema da palestra proferida pela professora Graciela Chamorro, na noite de 13 de janeiro, 7º dia do Curso de Verão 2022, promovido pelo Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEEP), e que reflete sobre a “reconstrução da vida e da sociedade, com saúde para todas as pessoas”.
A professora transmitiu um pouco da sua experiência e aprendizado com o povo Kaiowá. “O povo Kaiowá traz o próprio eco-sistema no seu nome, a palavra ‘Kaiowá’ significa ‘alguém da mata’. Mas não é só isso, é alguém que vive dos recursos da mata, alguém, que fora da mata, teria que mudar o seu modo de vida”, esclarece.
Chamorro indicou que com o avanço da indústria e do chamado desenvolvimento, a mata foi se restringindo cada vez mais, sendo que hoje, no Mato Grosso do Sul, 85% da mata foi desmatado e, em alguns lugares, chega a ser 95% de desmatamento. Isso trouxe sérias consequências para a maneira de pensar e de viver desse povo e das suas comunidades, exigindo uma adaptação muito abrupta a um novo sistema.
“Essas mudanças forçaram os indígenas a viverem de outras coisas, uma vez que não podem mais viver da mata. Surgem cidades, surgem frentes econômicas, que acabam submetendo-os a novas propostas de trabalho. Eles passam a viver, portanto, na periferia do capitalismo, realizando os trabalhos mais difíceis e pior remunerados”, enfatiza Chamorro.
Nesse contexto de destruição da bio-diversidade, de falta de alternativa para viver como viveram os seus ancestrais, o povo Kaiowá, bem como outros povos originários, começa a ter dificuldade para seguir os ensinamentos ancestrais. Atualmente há apenas uma minoria que luta para manter esses conhecimentos e que enfrenta os desafios para sobreviver com uma cultura diferente.
A professora Chamorro reflete que na cultura ocidental, os seres humanos são uma força da natureza, mas são exteriores a ela, eles não se misturam, eles são outro. E podem fazer com a natureza o que eles querem ou precisam. Nas sociedades indígenas, os seres humanos são parte da natureza e a própria natureza tem características humanas. Não são totalmente independentes. Eles se reconhecem diferentes dos outros seres (animais, plantas), mas interagem com eles, como se fossem seres sociais, ou seja, é outro tipo de relação. Os mitos são, portanto, muito presentes, gerando emoções, medo, expectativas, e atualizando as histórias. A voz mítica, que também está presente nas nossas culturas, é muito forte na cultura indígena.
A voz é a expressão do ser
“Para o povo Kaiowá, a voz é a expressão do ser, é a expressão de sua alma. Como os humanos, animais e plantas também têm voz. Os seres sobrenaturais são sonoros, soam, falam, cantam. Todos os seres são dotados de alma. A voz interliga as diversas formas de vida. A casa ritual, para os Kaiowá, é a casa da palavra. Ali a palavra se estica e se encolhe, como um corpo na cama”, pondera.
Nos rituais, conta-se a história da origem para cada pessoa e para cada ser: para o milho, para a erva-mate, para cada elemento que está sendo evidenciado naquele momento. O ritual consiste em contar a história da sua origem, contar como ele veio. O encontro com essa história original se dá pelo poder da voz, que move todos os corpos pelo espaço vocal mítico.
Segundo a professora Chamorro, o mito é vivo, é como se abrisse os braços para acolher as situações semelhantes do presente. Ele acolhe e integra. É a atualidade da voz mítica. É a atualidade da história ancestral enquanto integra a realidade presente.
“A voz representa a alma. Os seres humanos são gerados pelo ato poético de sonhar a palavra. Vem um pássaro de noite e me diz que vou ser mamãe. O pássaro representa a alma na simbologia do povo Kaiowá”.
Como eles entendem a doença?
“Quando esse pássaro se afasta do ser humano, ele fica triste e doente. É pela voz de um terapeuta que se fará assentar de novo esse pássaro que voou, para que a pessoa recupere a sua saúde. É um distanciamento, a minha alma, a minha energia vital se afasta de mim e para isso eu tenho um símbolo, o pássaro que voa, eu fico doente e eu preciso passar por uma terapia para que esse pássaro volte. Se a voz dessa pessoa não for mais restaurada, esse ser deixa de ser e morre. Quando não é possível trazer de volta o pássaro, então sobrevém a morte”, diz a professora.
A terapia indígena, portanto, é baseada no canto e na palavra. O texto das canções é muito rico. Esse ritual leva as pessoas que participam para espaços imaginários da sua cosmologia. O corpo é compreendido como um território, o menor território que a pessoa tem. “As músicas também percorrem o corpo da pessoa, como se estivessem restaurando esse território. É como se esse corpo se relacionasse diretamente com as forças vitais cósmicas, pois o próprio ritual vai fazer a pessoa avançar mais e mais no espaço cósmico”.
“O ritual ‘Ñevanga’, as palavras que curam, não é facilmente perceptível por ser mais doméstico. É realizado durante quatro dias, geralmente à noite, quando o pôr do sol começa. O ritual inteiro é composto de cantos entoados um após o outro. E costuma durar em torno de duas horas cada noite”, descreve.
A importância e a eficácia dos rituais
Quando a FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) ainda não estava presente na comunidade atendendo aos indígenas, as pessoas procuravam muito mais os rituais e eles tinham mais efeito, pois as pessoas acreditavam. “A presença da medicina convencional que é levada pelo Estado, chega arrasando. Chega para curar, para cuidar do doente, mas chega sem querer saber o que esse povo já sabe sobre isso. Como eles já se tratam, como eles fizeram isso até hoje. Há uma incapacidade muito grande dos profissionais e das instituições para exercitar o diálogo com a cultura indígena”, considera.
Chamorro concluiu dizendo que “o ritual ‘Ñevanga’, as palavras que curam, traz saberes ancestrais e não é uma terapia que vai curar todas as doenças. Mas ele restabelece o mínimo, ele tira o desespero e também cura. Os indígenas reconhecem que existem doenças que eles não têm como curar, como por exemplo o próprio coronavírus. Eles não têm como curar, pois é algo novo, que eles não conhecem. É uma doença ignorada”.
Jorge Demarchi
Equipe de Comunicação