Quando se fala em migração abre-se um leque de questões que envolvem histórico familiar, condições do território de origem, posicionamento político e cultural, grupo social, entre outros. Na programação do Curso de Verão deste domingo, dia 13, com os chamados Círculos de Cultura, os cursistas ficaram muito próximos desta realidade.
A atividade contou com a participação de migrantes e membros de instituições de apoio que relataram as suas vivências dentro deste cenário de lutas diárias. Entre uma roda de diálogo e outra, muitas dúvidas, informações importantes e a implícita vontade de acolher.
Para a coordenadora interina do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEEP), Lourdes de Fátima P. Possani, a iniciativa é uma ferramenta preciosa para o debate de forma participativa sobres os temas abordados no Curso, uma oportunidade enriquecedora de conhecimento.
“Todo o território é nossa casa”
“Para nós, não há cerca ou fronteira. Todo o território é nossa terra”. Essa afirmação foi compartilhada por Julieta Paredes, pertencente ao povo Ayamara, e Tamikuã Txihi, do povo Pataxó, convidadas para partilhar suas experiências e lutas no Círculo de Cultura “CIMI – Conselho Indigenista Missionário.
Julieta sustenta a importância de identificar os membros dos povos indígenas pelas suas identidades próprias: Ayamara, Pataxó, Tikuna, Guarani, etc. O termo “indígena” foi criado pelos colonizadores para designar os mais de 5 mil povos originários com mais de mil línguas, e indica a história de colonização e de luta. Também a divisão do território americano em fronteiras foi algo criado pelos colonizadores. “Para nós, povos originários, todo este continente (América) é um único território, que chamamos de ‘Abya Yala’, que, na língua Kuna, significa ‘Terra madura, Terra viva ou Terra em florescimento’”, ratifica Julieta.
“Falamos de uma luta ancestral, pois a partir de 1492, sempre foi muito difícil para os irmãos e irmãs indígenas. Sempre estivemos na luta, pois querem matar e acabar com os povos originários”, esclarece.
Já Tamikuã confronta a ideia errônea de que os povos originários não são civilizados. “Somos povos originários e civilizados sim, somos civilizados com a mãe terra e com a natureza, que protegemos e defendemos”. Também questionou o conceito de “migração”, pois para os povos indígenas nunca existiram cercas ou fronteiras. Era tudo um único território. Ela nasceu na Bahia e hoje mora em São Paulo, mas não se sente migrante, pois continua vivendo no território dos seus ancestrais. “Para nós não há cerca ou fronteira; todo o território é nossa casa. Nós trocamos de lugar, mas não saímos do nosso território”, reitera.
“Tivemos uma vitória com a Constituição de 1988, pela inclusão de um capítulo que reconhece ‘aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’. Hoje, no entanto, vemos retrocessos e a tentativa de expulsar os povos originários e de exterminá-los”, enfatiza Tamikuã.
Ela faz um desabafo: “Nossa luta é por conservar nosso território e defendê-lo contra o capital. Nós, como povos originários, fomos escolhidos para proteger a mãe terra. Arrancaram nossas terras e arrancaram os africanos de suas terras para trazê-los para cá. Sentimos uma grande dor, porque a nossa luta é regada com muito sangue de nossos antepassados. O futuro que buscamos é viver bem, com qualidade de vida, na nossa mãe terra. Nós não invadimos, nós retomamos o território que nos foi tirado”.
Além dos depoimentos de Julieta e Tamikuã, no Círculo de Cultura houve a partilha de experiências de integrantes de acampamentos de sem-terra e de pessoas envolvidas na luta pelos direitos dos pobres e dos indígenas.
Barreiras do preconceito
O relato de Karai Nhe’ery (Guarani) foi referência no Círculo de Cultura dedicado a questões indígenas. Ele vive próximo ao Pico do Jaraguá, região norte da cidade de São Paulo.
Em seu depoimento, publicado na página 218 do livro do “Por uma cidade acolhedora, somos todos migrantes” (Curso de Verão 2019), ele compartilha barreiras bem conhecidas e muito presentes no cotidiano dos indígenas que vivem próximos às cidades. Dentre elas a dificuldade de direito de ir e vir, o convívio social com pessoas não indígenas e a luta para manter suas tradições.
“Ficam reparando nossas roupas e celular para nos acusar de não sermos mais guaranis”. Este é um dos trechos do depoimento de Karai Nhe’ery que desencadeou muitas reflexões nos participantes do grupo e questionamentos como: será que a cultura para nós (não indígenas) tem que ser dinâmica e para eles (indígenas) deve ser estática?
A conversa se aprofundou em trocas de experiências dos cursistas e visitantes, que se mostraram bastante sensibilizados com as questões sofridas rotineiramente pelos indígenas, em especial, os que residem dentro e próximos a cidades urbanizadas.
Outro trecho do depoimento do guarani que colaborou para essa sensibilização foi: “Quem vê a alegria de nossas crianças não vê nosso sofrimento. É igual sabiá na gaiola. Canta, canta, canta. Pensam que é um canto feliz”.
Imigrante, mulher e presidiária
Ser imigrante já é um problema no Brasil, imagina ser imigrante, mulher e ainda presidiária. Para refletir esta temática com os cursistas, o encontro teve como convidada a agente da Pastoral Carcerária em São Paulo, Mariana Antonio Santos.
Além de toda a luta para sobreviver em um país que – apesar de ter uma legislação que prevê seus direitos – possui uma deficiência nos mecanismos de acesso às políticas públicas, os imigrantes têm que conviver diariamente com o preconceito, discriminação, desconfiança, rejeição e violência.
As dificuldades se estendem quando se trata de mulheres, que já sofrem pela questão de gênero e ainda cometem alguma infração que as levam ao cárcere privado. Muitas delas são presas ao tentarem entrar no país, com envolvimento com o tráfico de drogas.
O julgamento da sociedade é uma problemática, porém, a sobrevivência dessas mulheres no sistema penitenciário passa a ser o grande dilema.
Mariana explica que entre os principais pontos estão a dificuldade para entender a razão pela qual estão presas, como está o seu processo judicial e o que pode ser feito para alcançar a liberdade. Além disso, têm a dificuldade de conseguir contato com familiares em seu país de origem.
Entidades como a Pastoral Carcerária tem realizado um trabalho de amparo a essas mulheres, orientando e tentando minimizar esses problemas. Porém, é necessário um esforço maior por parte do Estado, oferecendo assistência e preservando os seus direitos sociais.
Um olhar humanitário
Apesar das diversas dificuldades encontradas para sobreviver, os migrantes têm encontrado o apoio de pessoas e entidades que os enchem de esperança. Representantes de entidades e instituições que prestam este tipo de assistência também estiveram nos Círculos de Cultura para falar desse trabalho.
Em São Paulo, por exemplo, existem entidades que realizam trabalhos significativos de assistência, com um olhar humanitário para essas pessoas.
É o caso da rede solidária Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP), que, por meio do Centro de Referência para Refugiados, realiza na capital serviços de acolhida e integração, de controle das políticas públicas para refugiados e solicitantes de refúgio.
Segundo a coordenadora do projeto, a assistente social Maria Cristina Morelli, o maior objetivo do projeto está em detectar as vulnerabilidades e as necessidades frente à situação dos refugiados no Brasil.
Outra organização que tem contribuído para que os migrantes tenham uma vida mais digna é o CAMI (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante), que tem por finalidade promover a defesa dos direitos humanos, atendendo prioritariamente imigrantes que trabalham nas confecções da grande São Paulo, em muitos casos sem garantias sociais e recebendo menos que outros trabalhadores.
De acordo com os imigrantes peruanos Izabel Torres e José Osores, que fazem parte da equipe, dentre as grandes preocupações da instituição estão os enfrentamentos ao tráfico de pessoas, a violência doméstica e o trabalho infantil. Já os desafios estão na luta pelo reconhecimento profissional e a necessidade de os imigrantes dominarem a Língua Portuguesa.
São Paulo ainda conta com o Centro de Integração do Migrante, com um espaço de convivência e de formação para os migrantes que vivem no bairro do Brás e arredores.
A proposta do Centro nasceu da necessidade dos próprios migrantes de ter um local para se reunir e do trabalho conjunto das Missionárias Servas do Espírito Santo e da Pastoral do Migrante da Paróquia São João Batista do Brás.
Há também o Serviço Pastoral dos Migrantes, que trabalha com a acolhida do migrante, seja nos locais de origem como de destino, e a defesa dos seus direitos.
A professora aposentada, Darialva da Graça, faz parte deste projeto. Atualmente, acompanha um grupo de migrantes bolivianos. Com o seu trabalho, conseguiu tirar duas pessoas da situação de regime de escravidão, onde trocavam seu dia de serviço apenas para comer. Ela e alguns paroquianos conseguiram ainda doações e montaram uma brinquedoteca para as crianças terem uma diversão.
Dois Círculos de Cultura foram dedicados ao CIEJA (Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos) que integra migrantes por meio do ensino da língua (Português), fornecendo alimentação e oferecendo opções de lazer.
Desde junho de 2010, após um terremoto que destruiu o Haiti, uma onda migratória haitiana para o Brasil foi iniciada e vem sendo intensificada anualmente.
Na cidade de São Paulo, a concentração de haitianos em Perus, bairro periférico localizado no noroeste, tem se destacado por conta do acolhimento realizado pelo CIEJA Perus I.
Já o CIEJA Cambuci facilita para que migrantes de diferentes pátrias cheguem até ele. Embora existam muitos estudantes haitianos, os venezuelanos e os sírios também marcam presença no espaço. Todos em busca de aprender o Português.
De acordo com a coordenadora, Maria Adélia Ruotolo, “embora cada CIEJA tenha seus próprios projetos e diferentes demandas, busca-se manter os dois em sintonia, até mesmo para replicar àqueles que atendem questões semelhantes”.
Sobreviventes
O filósofo Roberval Freire viveu a migração desde a infância, pois sua família saiu do sertão de Pernambucano em busca de oportunidades em São Paulo. Hoje faz parte da Pastoral do Migrante, onde não mede esforços para ajudar migrantes que buscam ajuda. “Quando vivenciamos a experiência da migração, de sair da sua terra em busca de uma melhor condição de vida, conseguimos compreender e entender a história do outro”, salientou Freire.
A história da Irmã Malgarete Scapanelli, que trabalha no Centro de Integração do Migrante (CIM), também é de emocionar.
Depois de viver em diversos lugares no Brasil, além de ter trabalhado no México, permaneceu no bairro do Brás, onde iniciou um trabalho missionário significativo com os migrantes, junto com a irmã Lucilene e uma equipe de voluntários.
Marcos é colombiano e guarda na memória muitas situações perigosas da Colômbia. Ele conta que “sua terra tem um alto índice de violência, narcotráfico e com um governo que não produz políticas públicas de promoção da educação, saúde e cultura”.
Yesenia Garcia, migrante venezuelana, pontuou suas experiências desde que chegou ao Brasil, há cerca de um ano e meio. Foi importante para os cursistas ouvir o depoimento de uma mulher, que em sua pátria tinha uma estabilidade, inclusive, financeira e teve que migrar para o Brasil devido à crise econômica que se instalou na Venezuela.
Embora nunca tenha pensando em sair de sua pátria e o processo migratório tenha sido difícil, ela jamais desanimou. Ao descobrir as aulas de Português do CIEJA Cambuci, vislumbrou uma oportunidade importante que agarrou e não mais soltou. “Sinto que lá é uma família. Lá tratamos sobre preconceito. Somos diferentes, mas temos semelhanças. Somos pessoas”, partilhou Yesenia.
Entre as histórias de sofrimento e incertezas também estavam a trajetória das bolivianas Florencia Quispe Marques e Lucelia Del Valle Briceno, hoje assistidas pelo CIM.
Equipe de Comunicação / CV2019