Para falar sobre a construção de uma nova cidade sem exclusões, solidária e comprometida com os mais pobres o Curso de Verão recebeu na quinta noite de assessoria Luiz Kohara, engenheiro civil, mestre em engenharia urbana, doutor em arquitetura e urbanismo, pós-doutorado nas áreas de sociologia urbana e habitação, educador popular e membro da secretária executiva do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.
O engenheiro iniciou sua participação agradecendo ao Curso por sua contribuição, sobretudo, na construção dos movimentos populares. “Ao longo desses mais de 30 anos, o Curso de Verão vem construindo uma força que é pra gente acreditar cada vez mais que somos capazes de transformar. Temos muitos desafios, mas sabemos que quando nos juntamos somos muito mais fortes”.
Kohara começou a abordagem sobre a construção de uma nova cidade falando do momento atual que inclui a pandemia da Covid-19. Listou os grandes desafios que atinge, principalmente, a população mais pobre, como o desemprego, a falta de moradia e a violência contra negros e mulheres, e assegurou que todas as desigualdades sociais foram intensificadas com a presença do vírus. “De forma abrupta, a pandemia não só mostrou todas as contradições que existe nas cidades brasileiras, – contradições no sentido dos resultados das desigualdades sociais que são construídas cotidianamente -como também atingiu de forma mais grave a população mais pobre”.
O educador popular reforçou que a concentração de mortes por Covid está onde há maior precariedade. “Em termos de números absolutos, as periferias são os bairros onde mais morreram pessoas em decorrência da Covid-19”.
Pontuou ainda que durante a pandemia os 42 maiores bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em mais de “34 bilhões de dólares”, enquanto milhões de brasileiros empobreceram ainda mais no mesmo período.
Apesar desta realidade, o mestre em engenharia urbana alertou que as desigualdades urbanas não são de hoje. E que voltar ao que chamamos de “normal” não é a solução. “A pandemia não trouxe os problemas. Ela só mostrou as consequências dos problemas”.
As contradições e as desigualdades urbanas no Brasil
Embora as cidades sejam construídas de forma coletiva, a muitas mãos, Luiz Kohara pontuou que isso ocorre a partir dos interesses e modelos econômicos e que conforme a necessidade e resistência, “a população mais pobre vai se adequando”.
Diante disso, ele fez um alerta. “Em tudo que prevalece os interesses econômicos nós temos destruição de vida e do meio ambiente”.
Partindo dessa realidade, frisou que as cidades não são solidárias e nem comprometidas com os mais pobres. Como exemplo, mencionou o tratamento direcionado a população de rua, que ele denominou como “ideologia de desprezo” e conduziu a reflexão por meio de um questionamento. “Que sociedade é essa que trata seres humanos como descartáveis, desprezíveis, irrecuperáveis e indesejáveis na cidade?”.
Para ele, que é membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, toda essa realidade é um grande desafio da “nossa insensatez humana”. Além disso, ao analisar outros aspectos como condições de moradias, índices de homicídios, sobretudo de jovens negros, saneamento básico e direitos indígenas, por exemplo, ela evidencia a gravidade das desigualdades e que “a vida da população mais pobre é totalmente desvalorizada e não é reconhecida como ser humano”.
O assessor citou ainda reflexões do professor e geógrafo brasileiro Milton Santos que por meio de estudos concluiu que “o valor da cidadania depende muito do lugar onde você mora. O território é determinante, o lugar em que você mora é uma marca do valor que você vai ter”.
Construindo uma nova cidade
Para Luiz Kohara um grande desafio para a construção de uma nova cidade por meio da solidariedade e do compromisso com os mais pobres é enxergar que essa construção deve partir da luta pela cidadania. Que segundo ele, é “uma luta da vida contra a morte”.
Luta essa que exige cuidar da casa comum combatendo as desigualdades sociais para assim, reconhecer a cidadania e a dignidade de cada pessoa, sobretudo, a que está em situação de pobreza e vulnerabilidade.
Ele lembrou que toda essa situação de contradições e desigualdades faz parte de uma construção histórica e estrutural. “A perversidade maior de tudo isso é a naturalização e a culpabilização em relação aos mais pobres”.
Como exemplo dessa construção histórica mencionou a Lei de Terras (Lei 601 do ano de 1850) que tornou a terra, que era um bem comum, em mercadoria valiosa.
De acordo com o assessor, essa realidade, pautada no racismo estrutural, impulsionou diversos aspectos como a migração para cidades e a especulação imobiliária. Fatores que comprometem o direito de todos à cidade. “É importante lembrar que esse direito à cidade é coletivo e não individual. Ele é um direito humano que tem que ser preservado e assegurado pra todos”, reforçou.
Foi pontuado também que neste processo de assegurar tal direito que ele afirmou que é preciso identificar e respeitar as especificações de cada cidade.
A luta do direito à cidade
Kohara ressaltou que a construção dessa luta por meio do afeto, do abraço e das mãos dadas entre as pessoas é importante, mas também são fundamentais outros elementos da luta popular como o conhecimento, mobilização e enfrentamento.
Ele mencionou a professora, arquiteta e urbanista Ermínia Maricato que em suas reflexões chama atenção para o ‘analfabetismo urbanístico’. “Muitas vezes vivemos numa cidade, mas desconhecemos os interesses e os mecanismos que a determinam”.
Diante deste fato, orientou que é fundamental conhecer o plano diretor, os orçamentos e a gestão de sua cidade para assim poder lutar pelo direito a ela.
Ouvir quem faz e quem vive na cidade por meio de uma escuta empática; estar atento as manifestações culturais que contam a realidade do local e conhecer as conquistas, as pessoas e as lutas históricas dos movimentos populares são outros elementos listados pelo assessor como fundamentais na luta pelo direito à cidade.
“Um grande referencial das lutas urbanas no Brasil é sem dúvidas as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) porque eram nelas que tinha a presença viva da esperança, da escuta e do reconhecimento de cada um como filho de Deus e cidadão”.
As mudanças da luta urbana
Durante toda a abordagem, o assessor apontou que a construção de uma nova cidade sem exclusões, solidária e comprometida com os mais pobres, além de ser identificada por inúmeros movimentos populares, também é marcada pela “luta de classes”, outro grande desafio. “Os setores das classes dominantes têm, cada vez mais, criminalizado as lutas populares. Em 2019 tivemos prisões de lideranças devido às lutas ocorrerem em regiões centrais”, relatou.
Outra alerta de Luiz é que muitos desafios seguem acompanhando a luta urbana, mas com o passar dos anos surgem novos que devem ser identificados para que a luta seja repensada. “Hoje estamos vivendo um momento de retrocesso político, então temos que levar em conta como devemos fazer este enfrentamento, onde cada vez mais o Estado está mais distante da população”.
O avanço do conservadorismo, do racismo e as novas mídias, dentre outras coisas, foram apontadas por ele como novas expectativas que devem ser levado em conta para nortear o caminhar dos movimentos populares.
Disse ainda que apesar da história ser construídas por diversas experiências positivas de luta urbana, é preciso uma nova articulação. “Mesmo sabendo que ainda há gente lutando, é preciso fortalecer essa luta com a compreensão de que a cidade é o lugar para que todos possam viver dignamente e que é uma luta da vida contra a morte”.
Finalizou compartilhando algo que acredita. “Toda luta da transformação social perpassa pelo território. Acontece a partir da escuta, da empatia, das pequenas mobilizações, do abraço, do afeto e da dança, onde a cidade seja espaço de libertação e não de repressão”.